Ao defenderem o que é público, os
manifestantes estão no exercício pleno de seus direitos como cidadãos A
invenção da democracia ocorre, por princípio, com a instauração do espaço
público. Ambos, democracia e espaço público, são constituintes da moderna sociedade
ocidental. A colonização do espaço público asfixia, logo, a experiência
democrática. Quando se tem um controle do espaço público, seja pelo Estado,
seja pelo privado, a democracia está em risco. É por isto, e nada mais, que a
conquista do espaço público implica na expansão da democracia e a experiência
democrática alastra o espaço público.
Na tradição do pensamento moderno, os protestos brasileiros das últimas
semanas colocam a questão duplamente. 1) Por sua pauta: a luta pelo direito ao uso
do espaço público expressa na reivindicação de garantia do direito de ir e vir
com passagens dos transportes coletivos mais acessíveis, tendo como horizonte
de expectativa a gratuidade. 2) Pela forma: a ocupação de vias e praças,
públicas por princípio.
Ao defenderem o que é público, os manifestantes estão no exercício pleno de
seus direitos como cidadãos. O direito à resistência da limitação do espaço
público é um princípio democrático que extrapola os limites do estado de
direito. É por meio da expansão da democracia que se instauram os direitos,
logo não são os direitos que limitam a experiência democrática. Cabe aos
cidadãos a defesa da democracia e de seu espaço, mesmo contra o estado e o
direito. Trata-se aqui de uma questão de legitimidade do exercício da cidadania
que já estava lá na Declaração Universal dos Direitos do Homem do Cidadão, de
1798.
Se a questão aparece com relevância nos milhões de brasileiros que ocupam as
ruas das principais cidades do país, em Porto Alegre tem características ainda
mais nítidas. As manifestações recentes têm como centro o espaço público. Os
protestos na capital gaúcha, desde 2011, têm se caracterizado pela defesa do
uso coletivo do espaço público e contra o privilégio dado ao automóvel. Em
manifestações locais organizadas por rede de vizinhos contra a implantação de
viadutos; protestos na região central contra o aumento das tarifas do
transporte público; manifestações contra a liberação do Largo Glênio Peres,
defronte ao Mercado Central, para utilização como estacionamento – Largo Vivo;
atos contra a colocação de ícones de companhia patrocinadora da Copa do Mundo
em locais públicos; fechamento de vias com uso de bicicletas – conhecido como
Massa Crítica; movimento Chave por chave como garantia de habitação para os moradores
a serem removidos pelas obras da Copa; ocupação de vagas para estacionamento
com atividades culturais – Vaga Viva; acampamento em parque público contra o
corte de árvores para a duplicação de avenida. Saliente-se a conexão difusa
entre ações de caráter internacional, como o Massa Crítica e o Vaga Viva.
Vistas em seu conjunto, as manifestações apontam nitidamente para a
emergência de uma consciência civil em defesa do espaço público e contrária à
priorização dada pelas ações públicas aos interesses privados. Milhares de
pessoas saírem às ruas em todo o país parando as principais cidades para
reivindicar passagens de transporte coletivo mais barata e criticar gastos
públicos bilionários com obras supérfluas e privadas, como estádios de futebol,
é ação pública de conquista do que é público. Ruas e avenidas ocupadas por
marchas são a expressão visível da disputa contra a apropriação privada do que
é público. É exemplo de conquista democrática.
Há algo de particularmente relevante nos protestos do ponto de vista do
planejamento urbano, pois, ao mesmo tempo que explicitam a inexistência de
debates públicos sobre as decisões governamentais, que intervêm diretamente na
vida cotidiana da população da cidade e da região metropolitana, alinham-se às
políticas públicas urbanas desenvolvidas nas capitais democráticas do mundo
ocidental. Se o primeiro aspecto demonstra um grave retrocesso na experiência
de democracia participativa que inseriu Porto Alegre como referência mundial, o
segundo coloca nossos gestores públicos na retaguarda do que vem se
estabelecendo desde os anos 1990 como consenso em termos de políticas públicas
de mobilidade, isto é, a priorização do transporte público confortável, do
transporte individual não motorizado ou ciclo motorizado e do deslocamento a
pé. Mas nem tudo são perdas. Nossas mobilizações estão sintonizadas com a
contestação mundial e com o sentido das intervenções urbanas mais recentes nas
principais cidades do mundo.
Nem só a luta pelo transporte público acessível, eficiente e confortável é
atual. Os atos contra a decisão da prefeitura de cortar árvores para aumentar a
quantidade de pistas em avenida da orla do Guaíba na região central da cidade
soam sintomáticos da sintonia com o que há de mais avançado nos movimentos
sociais urbanos atuais. Foram dias de protesto e acampamento, repetindo a
tática utilizada nos últimos anos em diferentes pontos do planeta em movimentos
cuja pauta foi a crise financeira internacional no Occupy nos EUA e nos
Indignados na Espanha, passando pelas lutas democráticas no norte da África, em
especial na Praça Tahrir, no Egito, até as lutas ainda em curso em Istambul na
Praça Taksim. Os combates políticos na Praça Taksim têm particular semelhança
com estes de Porto Alegre, por tratar, em seu princípio, de protestos contra a
tentativa do governo turco de privatizar parte da Praça.
Anacrônico seria uma palavra gentil para nomear o que significa, no
presente, investir no aumento de pistas para automóveis, em viadutos, na
construção de estacionamentos e aumento de tarifas do transporte público.
Anacrônico, pois o esgotamento do modelo de deslocamento intraurbano e
metropolitano baseado no automóvel é um consenso.
Felizmente, nada mais contemporâneo e democrático que a ocupação das ruas e
avenidas de grandes e médias cidades do país em defesa do que é público por
milhares de pessoas. Tendo à frente uma geração que mostra a cidade desejada.
Ocupação do espaço público como ato performático que instaura o que quer: a
reconquista do público.
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e coordenador
do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT)
Fonte: GPIT/UFRGS
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